Mauro Jerónimo é, apesar dos 37 anos, um treinador já com pergaminhos vastos no futebol. Tendo iniciado a sua carreira nas escolas do Benfica, somou passagem pelos sub-19 do V. Setúbal e pela equipa sénior do Pinhalnovense.
A seguir a uma breve experiência pelo Chipre, teve a sua primeira experiência como treinador principal, ao assumir o comando do clube chinês Fujian Chaoyue.
2019 foi o ano que marcou a mudança para o Vietname, país onde foi capaz de desenvolver jovens talentos, fruto da boa adaptação a diferentes contextos no futebol asiático. Pelos sub-19 dos PVF-CAND logrou a conquista de dois campeonatos nacionais, isto antes de assumir a equipa principal, onde alcançou as meias-finais da Taça Vietname, feito digno de registo para uma equipa do segundo escalão.
Na divisão secundária, esteve sempre na luta acesa pelo título, tendo falhado por pouco a subida ao escalão maior, referindo-se neste contexto que dirigia uma equipa que não tinha ambições para tal e baseava a sua missão em tentar desenvolver jovens jogadores.
Em março desde ano deixou o comando do PVF-CAND por mútuo acordo, após três épocas no clube. A viver na Ásia, Mauro Jerónimo admite ter saudades da família e não esconde o desejo do regressar a Portugal se for para um projeto onde possa “expressar e contribuir” com as suas ideias. Natural dos Açores, o técnico fez uma ainda uma radiografia à boa época do Santa Clara, equipa sensação da Liga 24/25.
SAPO Desporto: O que o motivou a seguir a carreira de treinador, e de que recorda dos primeiros tempos nas escolas do Benfica?
Mauro Jerónimo: A paixão pelo futebol, o desejo de querer estudar mais em profundidade o jogo, porque o futebol não é uma ciência exata mas sustenta muitas ciências, e o grande desejo de poder contribuir para a evolução dos jogadores. Os primeiros tempos nas Escolas do Benfica, foram de grande aprendizagem e de muito estudo. Foi aí que cresceu o “bichinho” de querer ser treinador como profissão a full time e não apenas como um hobbie. Agradeço sempre ao meu amigo Mister Pedro Alegria por me convidar e abrir portas.
SAPO Desporto: Que aprendizagens retirou das suas primeiras experiências, nomeadamente no Vitória de Setúbal e no Pinhalnovense?
Mauro Jerónimo: No Vitória de Setúbal era assistente dos sub19 do Mister Quim, que já tinha sido meu treinador no Vitória Sub19, foi ele que me abriu as portas para um trabalho mais profissional. É um treinador muito bom e um excelente ser humano. O Vitória naquele ano tinha muito talento como o Ricardo Horta, Ruben Vezo, Frederico Venâncio etc… fomos até à fase final do campeonato e a jogar muito bem. Aprendi muito nesse ano em termos de metodologia do treino e construção de um modelo de jogo…fazia também análises de adversários. No Pinhalnovense foi a primeira vez que senti o que é ter que jogar para ganhar todos os jogos, e em que os resultados são muito importantes no futebol sénior. Foi muito bom trabalhar com o Mister Barão, um senhor do futebol, com o qual aprendi imenso, principalmente em termos de como liderar um grupo de homens.
SAPO Desporto: Como foi a transição para o futebol asiático e que desafios enfrentou na adaptação ao Chipre, China, Taiwan e, mais recentemente, ao Vietname?
Mauro Jerónimo: O meu sonho de ser treinador profissional de futebol fez com que a adaptação a qualquer um destes países tenha sido mais fácil. O desejo interno de querer viver desta profissão e de ter a oportunidade de trabalhar num mercado tão competitivo, faz com que a capacidade de sobrevivência seja mais eficiente.
No Chipre é tudo muito parecido a Portugal, sabendo claro que há muitas especificidades como a língua grega, que pode causar dificuldades na comunicação. Mas de uma forma geral todos falam inglês. O grande choque foi quando me mudei para o continente asiático. China, Taiwan e Vietnam têm culturas muito parecidas. No entanto, apresentam algumas diferenças. Na China eles querem crescer no futebol através do dinheiro, em Taiwan o futebol não é o desporto n.º 1 e são obcecados por tecnologia, e no Vietname é a paixão e o patriotismo que fazem tudo andar. No contexto do Vietname, no futebol há um pouco a resistência a receber treinadores estrangeiros. Eles preferem apostar nos treinadores locais. Jogos são debaixo de muito calor durante quase 8 meses… há muitas paragens por aqui. Para além das competições FIFA, existem competições no sudeste da Ásia, o que faz com que as ligas sofram muitas pausas. Isto obriga a um planeamento muito minucioso e criativo, para manter os jogadores motivados e preparados para competir.
SAPO Desporto: O que mais o surpreendeu no futebol vietnamita quando chegou à PVF?
Mauro Jerónimo: A capacidade de trabalho e resiliência que os jogadores possuem. Treinar com 40 graus e pôr no treino uma intensidade de ação e concentração grande não é fácil e eles aqui conseguem. Todos os treinos deviam ter caneleiras porque em todos os exercícios a competitividade é altíssima e os jogadores dão tudo em cada bola! às vezes temos de acalmar para não haver lesões traumáticas. Depois, outro aspeto importante, foi o fazer muitas viagens de avião dentro do próprio país. Quase todos os nossos jogos fora de casa temos de ir de avião, porque o país é muito extenso. E eles aqui obrigam a fazer o treino antes do jogo na casa do adversário para adaptação ao relvado. Isto altera em muito o planeamento semanal, e temos de ser criativos e estudiosos para conseguirmos ter uma performance alta durante o ano todo.
SAPO Desporto: A nível pessoal, como foi viver e trabalhar em contextos culturais tão distintos?
Mauro Jerónimo: Foi excelente. Evolui-se muito como pessoa e como treinador. Partes com determinadas ideias e filosofias de vida, e até podes tentar implementar no teu dia-a-dia, mas tens de ser muito flexível com os detalhes. Tens de estudar muito sobre o país onde vives, e tentar falar um pouco da língua local. Não há um único país em que tenha vivido que não tenha aprendido pelo menos a linguagem do treino, para conectar mais rapidamente com jogadores e staff. Para conheceres o jogador tens que primeiro conhecer o homem, e para conheceres bem o homem, tens que aprender primeiro sobre a sua cultura. Eles aqui respeitam muito e dão valor a quem mostra interesse por eles, algo que nem todos os estrangeiros o fazem.
SAPO Desporto: A PVF foi recentemente distinguida como a melhor academia da Ásia. Que fatores contribuíram para esse reconhecimento?
Mauro Jerónimo: As infraestruturas de top mundial, staff qualificado nas diversas áreas e a trabalhar com uma equipa multidisciplinar, um programa e metodologia de treino detalhado, uma clara filosofia de jogo, e uma grande percentagem de jogadores formados na academia a jogar na primeira equipa, e muitos jogadores para os vários escalões da seleções nacionais.
SAPO Desporto: Que métodos ou filosofias utilizou para conquistar dois campeonatos nacionais com os sub-19 do PVF?
Mauro Jerónimo: Foi realmente algo inédito. Foi a primeira vez que a PVF ganhou no escalão de sub-19 e nós conseguimos por 2 anos consecutivos. A nossa filosofia põe o jogador à frente do processo. Queremos que os jogadores tenham coragem para disputar todos os jogos com uma mentalidade vencedora e com uma criatividade expressiva, com esta ideia base que queremos dominar todos os adversários. A nossa forma de atacar e defender tem o mesmo princípio geral, passar o máximo de tempo possível perto da baliza adversária, para criar o máximo de oportunidades de golos, e não deixar o adversário criar junto da nossa baliza. Os jogadores compraram essa ideia desde o primeiro dia e sentiram-se muito envolvidos no processo, porque atacar e pressionar, e voltar a atacar ou manter a posse faz com que os jogadores estejam constantemente envolvidos no jogo, melhorando e muito o nível de concentração e atenção deles. Também trabalhamos os jogadores com a ideia de que todos podem jogar, não há equipas A ou B, existe a nossa equipa. E com isso, fizémos muita rotatividade e todos estavam preparados para jogar, sabendo que quem estiver melhor será o escolhido, e em cada jogo o 11 pode mudar. Sentimos que foi muito positivo e todos se sentiram integrantes e importantes no resultado final.
SAPO Desporto: O desenvolvimento de jovens jogadores tem sido uma constante no seu percurso. Que características procura identificar e trabalhar num jovem talento?
Mauro Jerónimo: Para mim talento são os jogadores que trabalham árduo e aprendem mais rápido do que os outros. Mentalidade vencedora é a mais importante característica que define um jogador que pode chegar ao topo. Todos os dias querem mais e mais…nunca estão satisfeitos, e têm uma sede de querer aprender. Conheci muitos jogadores excelentes tecnicamente que desapareceram. Claro que resumidamente, se formos falar o que define um jogador talentoso, digo que é o jogador que toma as melhores decisões em campo, que tem mentalidade vencedora, e o que faz os outros jogadores jogarem melhor.
SAPO Desporto: Conduziu o PVF-CAND, da II Liga vietnamita, a resultados históricos, como as meias-finais da Taça do Vietname. Que balanço faz dessa passagem pelo clube?
Mauro Jerónimo: Depois de treinar os sub-19, recebi o convite para assumir a primeira equipa, e foi uma honra. Foram 3 épocas em que jogámos com 70% dos jogadores formados na academia com uma média de idade de 21 anos. Fomos humildes, mas também fomos corajosos. Fomos uma equipa que demonstrou identidade e capacidade de dominar em quase todos os jogos. Fomos eleitos por duas vezes como a melhor defesa, uma vez como o melhor ataque, terminamos 2 vezes no playoff de subida em 2.º lugar, mencionando que em 2023 ficámos com 37 pontos, os mesmos do Quang Nam…não fomos campeões pela diferença de golos. Conseguimos também a medalha de bronze na Taça, algo que não acontecia há 18 anos com uma equipa de 2.ª liga. Batemos o recorde da Liga com 2 anos e 3 meses sem derrotas em casa. Foram momentos de grandes alegrias e tristezas com a perda do playoff, mas saímos de cabeça erguida e com o sentimento de que foi um excelente percurso e grande trabalho de equipa.
SAPO Desporto: Deixou recentemente o comando do PVF-CAND. Que metas tem agora para o futuro?
Mauro Jerónimo: Estou a terminar a licença PRO este ano, por isso o meu objetivo é continuar a trabalhar e a evoluir como treinador e pessoa, para poder ter uma oportunidade numa primeira liga, no nível mais alto.
SAPO Desporto: Considera regressar a Portugal ou pretenderia continuar ligado ao futebol asiático?
Mauro Jerónimo: Considero sempre regressar a Portugal, se for para um projeto que tenha uma visão e uma missão na qual eu possa expressar e contribuir com as minhas capacidades e ideias. Acredito que mais tarde ou mais cedo irei regressar. Claro que o mercado asiático é muito apelativo, porque as condições de trabalho são excelentes para qualquer treinador desenvolver um bom trabalho, no entanto, sinto falta de estar perto da minha família e contribuir para o futebol do meu país.
Mauro Jerónimo: Como vê a evolução do futebol na Ásia e que papel acredita que pode ter nesse crescimento?
SAPO Desporto: O slogan da AFC (Asian Football Confederation ) é THE FUTURE IS ASIA… e acho que pode ser, porque há uma grande dedicação, paixão e investimento financeiro para que o futebol evolua e lute par a par com os outros continentes. Vejo claramente, que o futuro poderá ser aqui. Vejamos o que está a acontecer na Arábia Saudita com os melhores jogadores mundo a jogarem lá.
SAPO Desporto: Como tem olhado para a liga portuguesa nesta temporada e qual tem sido a equipa que tem demonstrado maior qualidade ao longo da prova?
Mauro Jerónimo: Até agora Sporting e Benfica são as equipas mais fortes porque estão nos 2 primeiros lugares, mas acho que o Braga tem feito uma época excelente e o Santa Clara, Casa Pia e Estoril têm demonstrado um futebol de muita qualidade.
SAPO Desporto: O Santa Clara tem sido umas grandes sensações da prova. Subiu este ano à primeira Liga e tem andado pelos lugares cimenteiros. Como analisa a temporada desta equipa açoriana?
Mauro Jerónimo: Santa Clara tem um projeto claramente muito bem organizado pela direção e equipa técnica. Não é por acaso que a equipa é tão consistente desde a época passada quando jogava na segunda liga. Penso que a formação do plantel, com um grande core da época passada, e mantendo a equipa técnica com o Vasco a liderar, o clube encontrou a estabilidade para poder jogar bem e ter resultados. Isto não acontece em muitos clubes, em que há uma união e ligação fortes entre a direção, staff e jogadores.
SAPO Desporto: Como tem acompanhado o trabalho do Vasco Matos no Santa Clara. Pegou na equipa na segunda liga, conseguiu subir de divisão e este ano tem demonstrado muita qualidade na estreia como treinador principal da Primeira Liga.
Mauro Jerónimo: Tem feito um trabalho excelente. O Santa Clara manteve muito das rotinas da Segunda Liga, claro que com adaptações considerando que os adversários da Primeira Liga são mais fortes, mas mantendo sempre a sua identidade. O Modelo de jogo da equipa e os seus princípios estão bem assimilados pelos jogadores. E vê-se uma coesão e um entendimento coletivo muito bom nos diversos momentos do jogo, independentemente de jogarem em casa ou fora.
SAPO Desporto: A nível técnico ou tático, quais são os méritos desta equipa, e que jogadores na sua opinião foram as peças fulcrais para a temporada que os açorianos estão a realizar?
Mauro Jerónimo: A força do Santa Clara é o coletivo, não acho que há 1 jogador, ou mais, que estejam acima dos outros. O Santa Clara apresenta desde a época passada o sistema 3-4-3, em que os jogadores estão bem familiarizados. Sempre assente numa boa solidez defensiva, a equipa é a 5.ª melhor defesa da liga. É claramente muito competente nas transições rápidas, porque quando recuperam a bola conseguem chegar na frente com qualidade e são muito eficientes na finalização. Não fazem muitos golos, mas fazem o necessário para ganhar jogos. Penso que também no jogo posicional são interessantes, em que há uma dinâmica com os médios muito boa e com bons timings dos 3 jogadores na frente, no ataque aos espaços em profundidade. Os laterais são dinâmicos, dão largura e também exploram bem os corredores laterais para cruzamentos. Penso que a equipa está bem coordenada e todos os jogadores sabem o que fazer nos diversos momentos do jogo, e isso é claramente trabalho do Vasco e da equipa técnica.